PESQUISA

domingo, 26 de maio de 2013

Edital racial : 5 visões sobre as cotas para 'cultura negra'

 
26/05/2013
Flávia OliveiraFeliz do debate em que faltam certezas. Quando suspendeu, em decisão liminar, os editais de incentivo à cultura negra, lançados pelo governo em novembro de 2012, o juiz José Carlos Madeira, da 5ª Vara Federal do Maranhão, certamente não imaginou que romperia o dique de uma reflexão há tempos represada na indústria brasileira do audiovisual. Os R$ 9 milhões que o Ministério da Cultura decidiu entregar a produções feitas por, para e sobre os negros brasileiros despertaram discussões em escala inversamente proporcional a seu valor monetário. A verba dos editais é fração ínfima do orçamento reservado à cultura por União, estados, municípios e estatais. O que está em jogo é, portanto, o modelo de repartição do dinheiro público. Objetivamente: é quem leva a verba da cultura e o que faz com ela, no país onde vigora o Estatuto da Igualdade Racial e onde o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por unanimidade, a legalidade de políticas de ação afirmativa. Cinco grifes da produção cultural compartilharam com o GLOBO suas impressões sobre os editais com viés racial. Em comum, Cacá Diegues e Joel Zito Araújo, os cineastas, João Carlos Rodrigues, o escritor, Lázaro Ramos, o ator, Spirito Santo, o músico, têm o desconforto. E divergem, em maior ou menor grau, sobre o significado e os efeitos de o governo destinar um naco de recursos ao protagonismo de um grupo étnico, num Brasil que se sabe desigual. Não à toa, três dos cinco artigos estão pontuados de interrogações, como a convidar o país a refletir sobre lacunas da política pública de distribuição de renda à produção cultural. É justo negros receberem R$ 9 milhões para escrever, produzir, dirigir e encenar suas histórias? Com a palavra, os atores.
"Raça é só aparência"
Cacá Diegues
Cineasta
Raça é um conceito equivocado que já provocou as piores catástrofes na História da humanidade. Escravidão, guerras e genocídios foram praticados em nome desse conceito que, cada vez mais, a ciência nos mostra e nos prova que é apenas uma aparência sem fundamento natural.
Os favores prestados a uma dessas hipóteses de raça podem muito bem reverter, no futuro, contra ela mesma - com o precedente, nada impede que, amanhã, um novo edital seja realizado para gente de todas as cores, com exceção dos negros.
Porém é dificil negar a importância de um edital como o que está em questão, já que, entre nós, a tradição do equívoco que nos divide em raças se confunde com opressão, discriminação e exclusão sociais. Estaremos mais longe de nossa contribuição original à civilização humana como uma fraterna cultura de amálgama, única nação afro-latina-tupiniquim do planeta, mas mais perto de uma justiça tardia. De cineastas consagrados como Antonio Pitanga, Joel Zito Araujo e Jeferson De, aos jovens cineastas moradores de guetos, favelas e periferias, hão de surgir grandes e generosos filmes.
E, afinal de contas, nunca ouvimos falar de qualquer guerra declarada em nome de um orixá.
"Perigoso precedente"
João Carlos Rodrigues
Jornalista, pesquisador e escritor
De boas intenções está pavimentado o chão do inferno. Os editais são politicamente irresponsáveis, além de paternalistas. Nada a ver com as cotas legalizadas pelo STF, onde todos podem concorrer, mas uma percentagem das vagas é reservada para um grupo racial. Aqui só podem se inscrever pessoas ou empresas de determinada origem étnica, todos os outros brasileiros estão vetados. Metade da população. Ficou caracterizado o favorecimento por motivo racial, condenado pelo costume e proibido por lei. Em algum momento os vencedores terão de provar sua raça para fazer jus ao prêmio. Quem decidirá? Por quais critérios? DNA? Fotografia? Vexame. O texto não foi bem pensado. O Estado não pode discriminar, mas também não pode favorecer. O mundo não vai acabar por causa disso, mas criou-se um perigoso precedente. Nunca houve denúncia de discriminação nos editais anteriores do Ministério, que frequentemente contemplam artistas e produtores afrodescendentes de valor. Então por que uma trapalhada dessas?
"Tudo isso já é lei"
Lázaro Ramos
Ator
Importante é perceber o edital no contexto em que está inserido. Dentro do previsto pelo Estatuto da Igualdade Racial, em vigor, segue caminho lógico, como se vê no Artigo 4:
"Art. 4º A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do país será promovida, prioritariamente, por meio de:
VII - implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas no tocante à educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança (...) e outros."
Tudo isso já é lei. Mas o edital trouxe outras reflexões e perguntas sem resposta:
O edital é de R$ 9 milhões. Quanto é distribuído para a cultura em editais durante um ano? O último do MinC, o Prêmio de Teatro Myriam Muniz (20 de maio), tem investimento de R$ 10 milhões. Em 2012, a Petrobras Cultural somou R$ 67 milhões. O governo de São Paulo deve destinar R$ 165,31 milhões a projetos culturais só em 2013. O montante total é bem maior do que o edital do MinC suspenso pelo juiz.
Dos editais já existentes no país quantos empreendedores negros foram contemplados? Dos eventos com enfoque na cultura negra, quantos dos proponentes que os executaram eram negros?
Será que R$ 9 milhões dão conta da dimensão que a cultura negra tem no Brasil? Os outros editais, que, pela análise do próprio MinC, não contemplavam os negros, poderão continuar a não contemplá-los?
Se o Estatuto prevê ações afirmativas, a diversidade não deveria ser incluída em todos os editais? O empreendedor negro estará restrito aos R$ 9 milhões e não poderá pleitear verba de outros editais?
Por que, antes do edital, havia apenas 18 projetos de temática negra e, agora, há 2.900? E, por fim: qual é a finalidade de um edital público de cultura?
"Não havia restrição"
Spirito Santo
Músico e escritor
Apoio ações afirmativas no campo da Cultura. As restrições que os negros sofrem para atuar no mercado são enormes, mas, convenhamos: é indispensável sempre "fazer a coisa certa."
Visibilidade midiática é uma área crítica de controle social, o "meio do campo" que rege nossas relações coletivas. Estas áreas são controladas sim por uma visão de cultura brasileira colonizada, que omite valores de ascendência africana, numa espécie de reserva de mercado bem questionável. Mas é importante ressalvar: nunca existiram regras explícitas restringindo a participação de negros em editais de fomento à cultura.
Nem se pode afirmar, peremptoriamente que estas ações são racistas. Nosso racismo midiático é baseado, em normas de compadrio nunca escritas em editais ou confessadas em reuniões públicas. As restrições para o acesso de negros ao mercado da Cultura talvez se processem no recôndito das bancas de jurados, nas informações privilegiadas repassadas à candidatos etc.
(Um choque de ética nestes viciados concursos, aliás já seria um adianto no sentido de sua democratização e, por conseguinte do aumento exponencial do acesso de artistas negros às verbas do MinC.)
O sentido estrito das políticas, por isso mesmo, precisa estar baseado em parâmetros legais (mesmo que as leis vigentes sejam injustas). Este sutil entendimento do assunto faria -como fez -toda diferença. Olho vivo, pois o horizonte brasileiro atual não parece estar muito afeito a avanços rumo à democracia.
"Descolonizar mentes"
Joel Zito Araújo
Cineasta
Uma sociedade deve buscar medidas especiais para resolver suas desigualdades históricas profundas? O Congresso Brasileiro ao aprovar o Estatuto da Igualdade Racial considerou que sim. O STF, ao julgar como legítima uma política de cotas para a inclusão de negros, índios e estudantes oriundos da escola pública na universidade pública brasileira, também considerou que sim.
Mas, um juiz de uma das regiões mais desiguais do país, o Estado do Maranhão, desconsidera essas conquistas recentes e tenta dar um passo atrás. É necessário refletir o quanto uma atitude como essa afeta o país como um todo, além de frustrar a enorme demanda reprimida de projetos afroculturais que explodiu em mais de duas mil inscrições para o edital do MinC que esse juiz tenta inviabilizar.
Como desconsiderar que vivemos em um Brasil que tem uma representação audiovisual tão distorcida de si mesmo, onde um terço das telenovelas produzidas, em meio século de sua história, não trouxe nenhum negro, e só muito recentemente começamos a ver atores afrodescendentes incorporados como belos e como protagonistas?
Por que setores da sociedade brasileira, uma espécie de Brasil profundo e arcaico, recusam-se a ver que o país tem de transformar-se para manter-se no posto de uma das seis maiores economias do planeta, e para isso precisa criar ambientes de diversidade para preparar profissionais que irão representá-lo em suas necessidades globais de comércio e trocas diversas?
Considero que o edital do MinC é uma das pedras fundamentais que estão ajudando a erguer um novo país. O MinC, muito além de assegurar que uns poucos milhões de reais possam alimentar a nossa produção cultural com narrativas diversas do que estamos acostumados, irá ajudar a preparar quadros para o mercado audiovisual tão carente de profissionais afrodescendentes.
Devemos aplaudir o MinC por buscar medidas positivas para assegurar algum equilíbrio diante de uma produção audiovisual massiva que historicamente escolheu o segmento branco para representar o ser humano, o luxo, a beleza e a inteligência. É hora de descolonizar nossas mentes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário