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quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

'Projeto curricular muito extenso não é exclusivo do Brasil', diz especialista

24 de Dezembro de 2015

Fonte: Folha de São Paulo

Só no último ano, o especialista em educação britânico Dave Peck trabalhou no projeto de implementação ou reformulação de currículos nacionais no Reino Unido, Chile, Ruanda, Sudão do Sul, Zâmbia e Líbano, além do Brasil.
Presidente da ONG britânica Curriculum Foundation, Peck já esteve no país quatro vezes e está envolvido no processo de criação da Base Nacional Comum no Brasil há um ano e meio.
A base pretende definir o que será ensinado nas escolas a cada ano no Brasil. A primeira versão do documento foi divulgada pelo governo em setembro e está recebendo propostas de mudanças. Muitos especialistas têm afirmado que o documento é excessivamente extenso, o que dificultaria sua implementação por parte dos professores.
Uma nova versão deve ser apresentada até março e a intenção é que o documento final esteja pronto no primeiro semestre de 2016. "Há um excesso (na primeira versão), precisa ser diminuído. Mas isso é um problema comum em todo o mundo. Com certeza o brasileiro não está entre os piores", afirma Peck.
Ele critica, porém, o projeto para o ensino médio, que não dá poder de escolha para os alunos e pode estimular a evasão. O consultor afirma ainda que a ocupação de escolas em São Paulo mostra que é importante que os alunos se envolvam no debate sobre o currículo escolar.
BBC Brasil: Como o senhor avalia o documento da Base Nacional Comum divulgado até o momento?
Dave Peck: Eles decidiram, de forma muito sensível, por um processo de consulta em duas partes, e o que temos é a primeira versão. É o primeiro rascunho, precisa ser trabalhado para melhorar, mas é impressionante que o primeiro passo tenha sido dado e com tanta pressa.

Está muito grande?
Eu diria que há um excesso, precisa ser diminuído. Mas isso é um problema muito comum em todo o mundo. Com certeza o brasileiro não está entre os piores. Há países em que os professores dizem que só conseguem ensinar 50% ou 75% (do programa). A proposta (do Brasil) não vai nesse sentido, não está tão excessiva.

O sr. se lembra de algum país que tinha um projeto grande e conseguiu diminuir?
A Austrália. Uma parte do processo pelo qual eles passaram foi exatamente esse, enxugar. Sendo muito rigorosos com a equipe responsável, dizendo "vocês precisam diminuir isso", repetindo o processo, uma hora ele ficou enxuto o suficiente. Ou seja, não é uma situação única de forma alguma.

Críticos dizem que o currículo é muito extenso porque houve pouco tempo para sua elaboração –foi feito em dois meses. Nos outros países, em quanto tempo isso costuma ser feito?
Foi muito rápido. Muitos países levam um ano ou mais, mas, dito isso, é difícil ser preciso sobre quanto tempo se leva, porque alguns fazem o que o Brasil fez –em um período intensivo–, e outros se encontravam apenas um dia na semana (para redigir o documento). O jeito como o tempo é alocado varia de país para país.

Então fazer rápido não é necessariamente ruim?
Não necessariamente, porque há ainda segunda rodada de consultas para acontecer. O crucial é o que vão fazer agora, com o resultado da primeira rodada de consultas. Tem outra rodada, são duas chances de acertar.

Quais são os maiores problemas deste primeiro rascunho?
O primeiro é coerência. Há a introdução geral, depois há introduções por matéria e depois há os padrões (de ensino). Neste momento, é difícil ver coerência nesses três níveis. Idealmente, na próxima versão, a introdução deveria citar os objetivos da Base em termos leigos, e as introduções das matérias deveriam ser uma explicação sobre como o ensino dessa matéria contribui para tudo o que está na introdução. O segundo problema é progressão. Deve haver uma sequência lógica de aprendizado, para que o trabalho de base seja feito antes que a próxima coisa seja ensinada. Por exemplo, quando em matemática os alunos começam a trabalhar com fórmulas, eles precisam de conceitos anteriores de álgebra. E outro (problema) são as competências. No velho mundo, pensava-se que era só as crianças irem para a escola, aprender tudo e estariam preparadas para a vida. Agora não é mais assim. Os empregadores reclamam há anos, no mundo inteiro, que as pessoas não têm a capacidade de resolver problemas, não conseguem pensar sozinhas, não se comunicam bem, não trabalham em grupo. Isso é às vezes chamado de "competências do século 21" e é importante que a nação tenha claras as competências nas quais está focando. Na proposta brasileira, isso não está claro.

E em relação às matérias em si?
A parte de linguagens, por exemplo, costuma ser estruturada em todo o mundo em quatro habilidades: falar, ouvir, ler e escrever. A brasileira está estruturada de uma forma meio sociológica e política... Acho que será muito difícil ensinar e monitorar o progresso da aprendizagem sendo estruturado de uma forma tão diferente. É uma abordagem "jabuticaba", é assim que as pessoas da área estão descrevendo. Há oito temas complexos, seis campos e cinco dimensões. É muito diferente.

Essa abordagem político-sociológica também aparece em outras partes do currículo? Alguns críticos afirmam que a parte de História está "contaminada" com uma "visão esquerdista".
Eu não li a parte de História, porque nos pediram para revisar matemática, ciências e linguagens. Bom, certamente em matemática e ciências isso não aparece. Não considerei isso com linguagens; parece uma forma estranha de estruturar mas é difícil detectar um posicionamento político.

A parte de História não segue uma ordem cronológica, e isso tem sido muito criticado. Algum outro país faz isso?
Há um debate com História, se você segue a ordem cronológica ou não. Aqui no Reino Unido os alunos começam de forma cronológica e vão aprendendo as coisas enquanto crescem. Há desvantagens, porque aí você tem um menino de 5 anos que entende de História Antiga e um de 16 que entende de História Contemporânea. Sempre há um grande debate sobre como estruturar isso. Mas não consigo lembrar, no momento, de algum país que não faça cronologicamente.

Outra proposta é destinar 60% para a base nacional e 40% para conteúdos regionais. Existe experiência internacional semelhante?
Isso é outra questão que precisa ser abordada. Normalmente o currículo nacional tem mais que 60%, normalmente 70% ou 80%, mas o fato de estarmos falando sobre percentual pode ser contraprodutivo, porque soa como se disséssemos "quatro dias por semana ensinamos o currículo nacional, e no outro dia é o local" –quando na verdade os dois deveriam estar totalmente integrados. Não há fronteira entre os dois fora do papel.

E como o sr. vê as proposta para o Ensino Médio?
A maioria dos países têm um sistema que permite aos estudantes seguir percursos diferentes neste período: um (ou mais de um) percurso acadêmico e outros de ensino profissional. No Brasil, todo mundo tem 13 matérias. É muito, e tenho certeza que isso está ligado à evasão escolar. Quando estudantes podem escolher e seguir seus interesses, há mais chances de eles se esforçarem. E quando só há um caminho, ele não necessariamente serve para todos, e alguns (dos alunos) se desinteressam.

Quando alunos ocuparam escolas em São Paulo, eles se organizaram para ter as aulas que queriam, como circo, debates, ativismo etc. Isso deveria ser levado em conta? Já aconteceu algo semelhante em outro país?
Há um grande movimento nesse sentido no mundo, estudantes falando sobre o que querem aprender. Mas normalmente isso é feito de uma forma mais estruturada, o currículo é apresentado a eles com as coisas que devem ser aprendidas e eles opinam sobre como elas poderiam ser aprendidas. Nunca me deparei com uma situação como essa, em que os estudantes tenham tentado resolver o assunto eles próprios (risos). É interessante, porque, voltando ao tema das competências do século 21, ao se engajarem em seu processo de aprendizado eles desenvolvem pensamento crítico e habilidades de comunicação. As boas práticas aconselham a envolver os estudantes nessa discussão. Quanto mais você envolver os alunos nisso, melhor, porque eles sentirão que é algo feito para eles e por eles, e não imposto pelo governo.

Então as ocupações poderiam ser uma forma de engajar os alunos?
Sim, certamente. O processo de consultas que o ministério está fazendo é impressionante, está aberto a qualquer pessoa que queira participar e há duas rodadas de consultas. Então não há motivo para alguém não participar e não fazer da base um produto real da nação, e não do ministério. O que eles precisam fazer agora com a consulta é serem justos ao analisar as sugestões e garantir que o segundo rascunho realmente leve em conta os problemas. Essa parte é a mais importante. A primeira versão é só um rascunho, é esperado que tenha muitas fragilidades. Mas a segunda versão tem que considerar as consultas e certamente será muito melhor. 


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