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segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

‘Temos de fazer com que a criança goste da escola’, afirma Joul Matéria Rima

29 de Fevereiro de 2016

Fonte: Mural- Folha de São Paulo

Durante a infância, Joelson do Nascimento Silva, 37,  teve dificuldades com a matéria de ciências na escola. Porém, fazendo um hip hop chamado “concreto e anatômico” ele conseguiu tirar a nota máxima na prova.
Hoje, ele é líder do Projeto Matéria Rima, fundado em 2002 com a ideia de usar o hip hop para ajudar as crianças a superarem as dificuldades pedagógicas. Joul Matéria Rima, como é chamado, atualmente trabalha com 960 crianças em 15 escolas municipais de Diadema, na Grande São Paulo, onde cresceu.
“[O projeto] surgiu dessa necessidade de querer fazer algo, de não cair nesse mundo da violência, das drogas. Sem opção, não gostando de estudar, uma escola nada atrativa, o bullying”, relembra. “Me chamavam de neguinho pé de barro, porque eu andava 30 minutos pra chegar até a escola e as ruas de Diadema eram todas sem asfalto, então não tinha como chegar lá com o pé limpo”.
O Projeto acaba de receber o Prêmio Itaú Unicef. Nessa entrevista, Joul fala sobre a transformação que a ideia causou e as dificuldades no começo da ação.
Como você se envolveu com a cultura hip hop?
Eu não tinha muitas referências e foi aí que conheci a cultura hip hop. A princípio me encantei pela dança. Só que antes, eu já ouvia a música rap. Soube que no Centro Cultural Inamar, em Diadema, tinham uns caras dançando. Uma das agentes culturais se dispôs a nos apresentar. Ela levou o Nelson Triunfo, o Marcelinho Back Spin, eles nos explicaram toda a história do movimento e que o intuito era trocar a violência pela paz, por arte. O Matéria Rima é isso, a gente pegou esse romantismo da cultura hip hop como emblema.
Joul ao lado de xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, (Foto: Beatriz Sanz)
Joul ao lado de Josiane Lima, coordenadora pedagógica do projeto (Foto: Beatriz Sanz/Agência Mural)
Quando você começou a fazer rap com o conteúdo didático?
Escrevi o meu primeiro rap com uma disciplina que eu tinha dificuldade e tirei a minha primeira nota 10. A professora achou que eu tinha colado e depois perguntou o que eu tinha feito. Quando disse que tinha feito um rap, ela pediu pra eu cantar pra ela e pra diretora. Convenci dois garotos na época a seguir essa linha que eu vinha desenvolvendo. Começamos a escrever músicas. Teve um momento que já estávamos com tanta música, fazendo algumas apresentações pequenas, sendo convidados para ir a alguns cursos de faculdades.
Como o Matéria Rima chegou até as escolas?
Tentamos ir direto na escola e não deu certo. As diretoras diziam: “Hip hop, Deus que me perdoe!”. O hip hop ficou muito discriminado, porque as letras são carregadas de denúncias. Fui chamado para falar sobre a minha ideia em uma reunião com o secretário de educação [de Barueri] e os gestores. Falei que a educação tinha feito eu ter um novo olhar e que tinha uma tecnologia social que podia ser a ponte entre a rua e a escola. Foi um sucesso. Fomos a todas as escolas, mais de 50 mil pessoas atendidas nas redes municipal e estadual de ensino. Em 2012, o Lauro Michels [então candidato à prefeito de Diadema] me convidou a voltar e desenvolver o projeto aqui, na cidade onde eu me criei, caso fosse eleito.
Qual a relação dos pais com o Matéria Rima?
Teve um pai que disse que achava que rap era coisa de drogado e explicamos que para dançar, a criança precisa comer bem, dormir bem e pra quem escreve rap, a mente tem que estar a milhão, tem que ler para ter um texto de qualidade. O nosso papel na periferia é esse: conscientizar, promover a cultura da paz, fazer com que a criança goste da escola, ensinar que o professor tem que ser respeitado, porque nesse momento que estamos passando da não valorização do professor, temos que fazer com que a criança goste da escola.
Como foi ganhar o prêmio Itaú Unicef?
A gente só descobre na hora, sempre que eu assistia essas premiações como o Grammy ou o Oscar, achava que eles já sabiam e que iam ao evento porque tinham ganhado e não é. Quando ganhamos o Regional já foi uma realização. Porque a gente sabe que tem entidade que oferece hip hop, dança para as crianças, mas transformar isso em material pedagógico, colocar na grade curricular, somos pioneiros. Tinha um projeto de Manaus que trabalhava com os indígenas, outro trabalho muito bom de teatro no Rio Grande do Sul e você fica receoso porque são ótimos projetos. Mas na hora que puxa o envelope é uma coisa que não dá pra explicar.
Projeto atua em Diadema, na Grande São Paulo (Foto: Beatriz Sanz/Agência Mural)
Projeto atua em Diadema, na Grande São Paulo (Foto: Beatriz Sanz/Agência Mural)
Qual o posicionamento de vocês sobre a reorganização das escolas proposta pelo governo estadual?
Não concordo, porque você precisa é melhorar o equipamento e não fechá-lo. Já são tão poucos. A gente precisa melhorar esse espaço. Precisamos conversar mais sobre isso para que seja uma evolução e não um retrocesso. As pessoas, às vezes, tem uma atitude muito individualista, então quando a gente consegue sensibilizar e mobilizar toda a galera, é como se fosse uma revolução sem armas.
Vocês já ofereceram o projeto para a rede estadual?
Já, mas não está sendo muito fácil. Já tentamos umas vias inclusive por deputados estaduais, mas até agora não conseguimos nenhuma boa notícia. Está na hora da secretaria estadual de educação perceber que se não criar alternativas, vai perder esses jovens.
Você realizou viagens internacionais para apresentar o Matéria Rima, como surgiram esses convites?
O primeiro convite foi através do Ministério da Cultura, durante a Copa do Mundo, na Alemanha, em 2006. Tínhamos feito uma versão do hino nacional em rap. Tivemos a oportunidade de nos apresentar ao lado de artistas como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Nação Zumbi, Chico Buarque. Com os contatos que fizemos fomos convidados por uma Universidade de Tecnologia da França, para apresentarmos o nosso trabalho. Fui pro Senegal para dar oficinas nas escolas e participar do encontro mundial de hip hop. E, em 2011, voltei para Alemanha, mas dessa vez para trabalhar com as escolas. Acho que a educação lá fora enxergou antes que o Matéria Rima era uma inovação. Às vezes a gente sai de uma apresentação e ouve “quando vocês forem um sucesso…”, e nós  já somos, porque sucesso é tirar o sorriso de uma criança.
Beatriz Sanz, 21, é correspondente de Diadema

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