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sexta-feira, 6 de junho de 2014

Ciência sem Fronteiras: aluno é pouco orientado e não tem disciplinas validadas


DAVI LIRA E OCIMARA BALMANT - IG ÚLTIMO SEGUNDO - 06/06/2014 - SÃO PAULO, SP

A estudante universitária Maria Clara Pestana, de 22 anos, teve uma das melhores experiências de sua vida durante o intercâmbio realizado pelo programa Ciência Sem Fronteiras (CsF) do Governo Federal. Aluna do curso de Ciência da Computação na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), ela estudou de setembro de 2012 a dezembro de 2013 como bolsista no Canadá. No entanto, a felicidade da experiência só não foi completa porque, quando voltou ao Brasil, teve dificuldades com a UFPB no reconhecimento das disciplinas cursadas lá fora.
`Todas as cinco matérias que eu fiz eram da minha área de formação. Mas até agora apenas duas foram aceitas como créditos na minha universidade. Outra eu consegui, ao menos, transformá-la em atividade complementar, porque ela não foi validada. É uma pena, queria ter aproveitado as cinco`, diz Pestana.
O problema de reconhecimento de créditos não é um caso isolado. Existem situações ainda mais graves. É o caso do estudante pernambucano Victor Lira, de 22 anos. `Para mim, pela oportunidade que tive, já me sinto um privilegiado. No entanto, mesmo tendo aproveitado ao máximo a experiência, das seis disciplinas que eu fiz no exterior, eu não consegui dispensar nenhuma no Brasil`, conta Lira, que é estudante de Medicina em Pernambuco.
Pelo fato de o Brasil possuir um padrão distinto de carga horária das disciplinas, teor diferente dos programas dos cursos e até diferenças simples na nomenclatura da matéria, parte considerável da experiência e do conhecimento que o aluno adquiriu no exterior acaba, simplesmente, sendo desconsiderada pelas universidades brasileiras.
Assim, mesmo os alunos estando vinculados a um programa oficial do governo e estudando em instituições no exterior conveniadas pelo Ministério da Educação (MEC) e pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), os estudos lá fora não são validados em sua totalidade no Brasil. A situação não é uma exceção. O número de queixas de ex-bolsistas é cada vez maior, conforme o iG Educação apurou.
Problemas como esse, dizem os especialistas, poderiam ser evitados se as instituições fossem mais flexíveis. `Isso é um absurdo. Olhar certas ´miudezas´ é bobagem. É um erro da universidade`, afirma o especialista em educação Claudio de Moura Castro, ex-diretor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência do MEC que coordena o programa.
Gestores universitários admitem, contudo, que a situação poderia ser evitada caso houvesse um acompanhamento e planejamento prévio das atividades a serem realizadas pelos bolsistas de forma antecipada.
Tal orientação deveria ser dada pelos coordenadores de cursos das universidades de origem, por parceiros internacionais que têm a fundação de intermediar a relação com o bolsista e pela própria instituição brasileira, por meio de seu coordenador de cooperação internacional, que dá o aval para o aluno viajar para o exterior. Dessa forma, o estudante já sairia do Brasil sabendo que a disciplina que vai cursar lá fora será reconhecida quando ele retornar às atividades regulares em sua universidade de origem.
Atualmente, contudo, existem alunos que acabam decidindo, por si só, o que vão estudar. Há situações em que o estudante viaja sem que seu plano de estudos - exigência definida pelo programa - tenha passado pelo crivo do coordenador do curso no País.
`Só quando cheguei no Reino Unido foi que eu decidi quais seriam as matérias que eu iria cursar. Eu nem cheguei a conversar com o meu coordenador no Brasil. No intercâmbio de um ano, eu fiz quatro matérias. Elas foram escolhidas meio que no chute. Levei mais em conta os meus próprios interesses`, afirma o mineiro Breno Barcellos, de 21 anos, que voltou ao Brasil no início de 2014.
Descompasso
Outra situação comum reportada por estudantes é o descompasso entre o plano de estudos que eles definem antes da viagem e a disponibilidade da oferta de disciplinas que eles encontram quando chegam nas universidade no exterior. Por ausência de vagas, desconhecimento das regras de matrícula, falta de orientação adequada é até pouca fluência na língua estrangeira, há alunos que preferem, simplesmente, optar por disciplinas menos complexas e que, de antemão, já sabem que não serão aceitas no Brasil.
`Uma aluna nossa do curso de Bilogia [disciplina dentro da área prioritária do programa, mais voltado às áreas de Exatas e Saúde], por algum motivo resolveu se matricular em Dança Africana. Outros, em vez de cursarem disciplinas relativas aos seus cursos, optam por italiano, por exemplo, mesmo não estando na Itália. Isso é um problema que é comentado entre todas as universidades, por meio de suas assessorias de cooperação internacional`, diz Josilan Barbosa, da coordenação do CsF da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Segundo ele, as universidades não têm um controle fidedigno de quais disciplinas foram escolhidas pelos estudantes após a matrícula no exterior e se elas estão sendo efetivamente cursadas. `Não conseguimos acompanhar os estudantes, nem temos acessos às notas deles durante a realização do intercâmbio`, completa Barbosa.
A culpa não é minha!
Mas cursar uma disciplina sem afinidade com a área de estudo nem sempre é resultado de falta de orientação ou de um `desvio proposital` de rota do estudante. Há casos em que essa adaptação é tudo o que se tem. Um bolsista consultado pela reportagem (ele preferiu não se identificar), é estudante de Cinema no Brasil [curso ligado à área do programa chamada Indústria Criativa]. Ao ser selecionado pelo programa, foi alocado em uma faculdade de Radialismo. `Tive de me adaptar porque o curso nem tem tanto a ver com o que eu realmente desejava`, diz ele, que estuda nos Estados Unidos.
Outro universitário consultado pelo iG Educação passou pelo mesmo problema de alocação em uma faculdade que não se relaciona com seu curso. Mas esse aluno, que também preferiu o anonimato, não está preocupado com a validação dos créditos. `Sabe que não tenho certeza [se as disciplinas serão aceitas pela universidade de origem]? Vou procurar saber depois. Mais do que minha formação acadêmica, essa experiência está sendo fundamental do ponto de vista cultural, antropológico e político. É a primeira vez que moro fora do Brasil.`
Efeito dominó
Todo esse quadro, que compromente a missão principal do programa - a iniciativa busca fomentar o intercâmbio científico e o fomento à inovação tecnológica do Brasil -, é visto pelo sociólogo Simon Schwartzman, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), como consequência direta da forma como a ação vem sendo “mal concebida desde o início”. Como o programa tem uma meta audaciosa de enviar 101 mil estudantes até 2015, critérios de qualidade na seleção, planejamento e acompanhamento dos estudantes não veem sendo respeitados de forma absoluta, diz o especialista. Atualmente, inclusive, o Governo Federal planeja lançar em breve a próxima versão do programa, o `Ciência sem Fronteiras 2.0`, com vistas a atingir a meta mais rapidamente.
“O governo inventa um número total [de meta], aciona o Itamaraty para pressionar os países. Esses, querendo agradar o Brasil, aderem ao programa. Para as universidades, muitas delas em crise, acabou sendo um bom negócio. É o Brasil quem paga a conta`, fala Schwartzman, referindo-se aos recursos repassados pelo governo a instituições estrangeiras e órgãos de intermediação de bolsistas brasileiros. Para ele, falta indicadores de qualidade ao programa. A questão foi o ponto central de uma das reportagens da série.
O professor brasileiro Marcus Smolka, que atua na Universidade de Cornell, nos EUA, acredita que o sucesso de um programa de intercâmbio científico vai depender do trabalho conjunto da universidade de origem e da instituição para a qual o aluno seguirá.
Ele conta como exemplo, uma parceria dos Estados Unidos (EUA) com o Vietnã. Antes do envio, o governo do Vietnã chamou 40 pesquisadores das principais universidades americanas para irem ao país e entrevistarem os alunos interessados. Lá, chegaram a um consenso sobre os alunos com mais qualificação para um programa de pesquisa. “É claro que, dessa forma, as chances de aproveitamento são muito maiores.”
Posição do governo
Coube ao MEC a centralização do posicionamento do Governo Federal. Sobre o reconhecimento das disciplinas cursadas no exterior, o órgão afirma que a questão é de responsabilidade das universidades brasileiras.
`Elas possuem autonomia para reconhecer o que foi cursado no exterior. Cabe destacar, que as instituições de origem dos candidatos assinam termo de compromisso com a Capes no qual se comprometem a fazer o reconhecimento das disciplinas cursadas. Para evitar problemas, a Capes orienta os bolsistas a montarem planos de estudos no exterior sob a orientação do coordenador institucional da universidade de origem no Brasil`.
Assim, o MEC ratifica que as universidades brasileiras são co-responsáveis pelo o acompanhamento do desempenho acadêmico dos bolsistas no exterior.
Ainda de acordo com a pasta, `o controle também é realizado pelos parceiros internacionais do programa que verificam a assiduidade do bolsista, seu desempenho, auxiliam na obtenção de vagas de estágio e atuam, ainda, da resolução de problemas de ordem acadêmica e administrativa em relação às instituições de destino`.

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